Por VITOR AMATO
Começamos com um rabisco, um gesto, ou às vezes um som, um cheiro; ou então nasce um impulso da observação de alguma pessoa na rua, ou de algum bicho, ou de uma mancha no asfalto. A origem da inspiração varia, mas, na hora de criar um boneco através da modelagem, o propósito sempre caminha numa direção: pretendemos criar aquilo que denominamos personagem. E me refiro a basicamente qualquer tipo de personagem: criatura humanoide, animal ou derivada, com traços orgânicos ou abstratos, de feições definidas ou apenas sugestionadas –– afinal, o personagem nada mais é que a junção dos rabiscos, relevos, dobras e traços que, somados à possíveis camadas de pinturas e cores, dão a quem observa a leitura de que ali, na sobreposição de materiais, há um ser que pode vir ter vida própria e que se relaciona conosco.
No entanto, por mais que se pretenda criar um personagem através dos bonecos, ressalto a importância de se discutir algo anterior a esse objetivo de criação. É uma questão que vem me perseguindo nos últimos meses e que, percebo, não se aplica somente ao teatro de animação, mas é fundamental a qualquer fazer artístico e criativo: trata-se do acaso ou aparente descompromisso inicial da criação artística, algo tão esquecido socialmente quando falamos de arte ou de processos criativos.
Antes de começar a falar propriamente desse tema, preciso relembrar um dos grandes problemas de nosso contexto social e cultural quando nos referimos ao fazer artístico. Ainda é bastante presente em nossa sociedade a ideia de que, para que se produza arte, deve-se ter uma espécie de dom ou talento que só se ganha na hora do nascimento, algo dado somente a algumas pessoas –– os artistas; a noção de que a arte é reservada somente àquelas pessoas dotadas de uma espécie de genialidade, uma qualidade nata e impossível de ser adquirida ou desenvolvida ao longo da vida. Acho necessário, portanto, evidenciar o quanto essa mentalidade é prejudicial não só para o exercício das atividades artísticas, como também para a leitura e acesso à arte num geral.
Tratam-se de ideias e conceitos incutidos e retrabalhados por um sistema cultural e educacional que parece inibir a produção artística nas periferias culturais através dessa ideia fixa: a falsa noção de que a criatividade e o fazer artístico não são atributos essencialmente humanos, mas acidentes, dádivas reservadas para poucas pessoas.
Artista seria aquela pessoa dotada de inspiração divina, sobrenatural? Seria aquele mítico gênio cuja visão excepcional nós, pessoas comuns, não conseguimos acessar? Não pretendo discutir aqui as causas e o histórico dessa mentalidade que vem se repetindo como uma herança desde a Idade Média europeia. O que trago para a discussão é: ainda predomina socialmente uma concepção que afasta a arte das nossas atividades e vivências; para exemplificar o que digo, gostaria de relatar algo que venho experienciando nos últimos anos.
É bastante peculiar o que acontece todas as vezes em que ministro uma oficina de criação de bonecos ou marionetes. As oficinas são ambientes que juntam pessoas das mais diversas formações e experiências, por isso começamos com alguns exercícios de desenho em que, através de rabiscos, buscamos despretensiosamente fazer surgir alguns personagens. Faço questão de ressaltar diversas vezes que esses desenhos não precisam ser bonitos, que meros traços no papel já cumprem a função. No entanto, há sempre algumas pessoas que categoricamente afirmam que “não sabem desenhar” ou que então, na hora de mostrar os rabiscos, pedem desculpas dizendo que são péssimas fazendo aquilo. O que me espanta não é a natureza da atitude –– afinal, qualquer ambiente criativo é necessariamente um ambiente de exposição que às vezes intimida ou gera certa resistência ––, mas sim a frequência e a forma com que ela ocorre: aos poucos fui percebendo que é um sinal da noção bastante presente em nós de que “desenhar” ou “rabiscar” é algo reservado apenas a algumas pessoas com talento.
De fato, é importante ressaltar que o desenho, tal qual toda atividade artística, é uma atividade que se desenvolve e se aprimora e que devemos respeitar e reconhecer –– em termos de direitos trabalhistas, inclusive –– o tempo de trabalho que as pessoas dedicam a essa prática e formação. Mas não é isso o que está em jogo no exemplo citado das oficinas; sinto que se trata de outro embaraço: a dificuldade que temos em nos lembrar, constantemente, de que desenhar não é algo fora da nossa experiência humana. De que, assim como qualquer atividade, o desenho é algo próximo e ligado ao nosso dia a dia –– assim como o escrever, o falar, o mover-se e o ouvir ou o cantar. Nesse caso é o desenho, mas poderia facilmente ser qualquer outra atividade ligada às artes, pois trata-se da nossa dificuldade em reconhecer o quanto a criatividade artística é constante no nosso cotidiano; e de como é natural acessá-la através de ações simples, mas não simplistas: elementares, práticas e pertencentes aos nossos corpos e imaginações, mas que soam estranhamente complicadas quando associadas conscientemente ao fazer artístico.
Em resumo, ainda impera a falsa concepção de que o processo artístico não pode partir de coisas consideradas banais ou cotidianas. Por isso, numa tentativa de quebrar essa barreira, costumo dizer nas oficinas que, na hora da criação dos bonecos-personagens, um dos caminhos mais viáveis é partir daquilo que já se tem a mão, começar com as formas aparentemente menos propensas à interpretação. Exemplo disso são os exercícios de pareidolia (o jogo psicológico de ver formas e sentidos onde, a princípio, não existem; o caso mais clássico é a observação de formas e seres nas nuvens).
É um jogo entre tantos que nos mostram que, procurando bem, podemos enxergar personagens a nosso redor o tempo todo: rostos nas manchas de madeira, corpinhos em garrafas, expressões em furos de tomadas e aparelhos elétricos. A observação dos ambientes ao redor nos abre as mentes não para criar personagens do puro vazio, mas para recebê-los e prosseguir dando-lhes diferentes formas.
Ao contrário do que se pensa, os personagens –– os tão almejados –– já estão por aí, nas nossas vidas cotidianas.
Assim, o princípio de partir-se do que já se tem no processo artístico vem, antes de tudo, como uma tentativa de tornar as coisas mais fluidas, acessíveis: um exercício de escuta, humildade e compreensão de que a criação artística talvez funcione muito melhor quando vista como tradução do universo ao nosso redor –– e não como expressão da nossa vontade pura e consciente sobre o mundo.
Abrimos as nossas percepções, portanto, para ver e ouvir o que o mundo tem a nos dizer; ousamos inclusive ouvi-lo de um jeito que pode ser meio bobo, talvez infantil –– não importa, partimos disso para dar início à criação dos personagens. Talvez seja esse o maior exercício da animação (dar alma, trazer à vida) dos objetos: traçar, por exemplo, alguns rabiscos aleatórios que remetem a um rosto, rosto esse que me remete a uma emoção e temperamento que leio como um personagem, personagem ao qual dedico um tempo investigando com o lápis. E nas etapas seguintes não deixa de ser diferente: com a modelagem, por exemplo, é como se a massa abrisse os caminhos para a composição, e não o contrário. Mudam-se os materiais, mas o princípio da constante tradução e escuta se mantém.
(Ressalto, aliás, a teatralidade desse método: não me considero artista visual, mas sim bonequeiro e ator. E, como ator, em cena carrego comigo o princípio de que o personagem não está em mim, mas nos olhos de quem vê. As minhas ações dão a leitura de um personagem, ações essas que são geradas diretamente pelo exercício de escuta do espaço, do tempo e das pessoas com que estou trabalhando –– plateia e colegas de cena. É natural, portanto, que esse princípio também se mantenha na hora de criar os bonecos).
Assim, ouvimos e observamos o ambiente ao nosso redor, damos liberdade ao acaso, partimos do que é considerado comum ou banal e, de repente, surgem alguns rostos, algumas expressões, alguns seres que logo mais vão ganhar corpo e interagir com o mundo. É um jogo simples mas que nos relembra da acessibilidade universal do fazer artístico e das nossas potencialidades de ler o mundo, de refletir sobre a existência e de criar a partir dela. Essa talvez seja uma das razões pelas quais considero a confecção de bonecos uma prática tão libertadora.
Referências Bibliográficas
AMARAL, Ana Maria de Abreu. "O ator e seus duplos: máscaras, bonecos, objetos". São Paulo: Edusp, Ed. Senac, 2002.
BARBOSA, Ana Mae. "Arte-educação no Brasil", São Paulo: Perspectiva, 2009.
Costa, Felisberto Sabino da. "A poética do ser e não ser: procedimentos dramatúrgicos do teatro de animação". São Paulo: Edusp, 2016.
Vitor Amato é ator, arte-educador e bonequeiro. Formado em Artes Cênicas pela ECA/USP com habilitação em Interpretação, passou pelo CPT-SESC, coordenado por Antunes Filho, e estudou teatro na Université Paris 8, na França. Há dez anos vem trabalhando em diversas peças de teatro e processos artísticos na cidade de São Paulo e, em 2021 criou o Projeto Tortinhos (@tor.tinhos no Instagram), espaço voltado para a reflexão, criação e desenvolvimento de bonecos e teatro de animação.
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