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SOBRE TEATRO, MEMÓRIA E OUTRAS CONSPIRAÇÕES

POR IDYLLA SILMAROVI


Gostaria de agradecer as colaborações de Daniel Toledo, Fabrício Trindade e Rafael Lucas na escrita desse texto.


Memória enquanto caminho


Apesar deste texto não ter a pretensão de ser uma escrita acadêmica, ele busca trazer um processo reflexivo acerca das minhas pesquisas em torno das artes presenciais e possibilidades decoloniais. Tudo muda o tempo inteiro, e pode ser que, em breve, minha opinião também, mas demarca um estado, o agora, Julho de 2020.


É muito difícil falar das minhas experiências e reflexões como artista sem situar de onde falo sobre isso. Meu nome é Idylla Silmarovi, sou artista da cena e pesquisadora. Corpo LGBTQIA+. Ao longo da minha carreira, venho desenvolvendo pesquisas em fazeres pessoais, mas também em processos compartilhados em diálogo com outros fazeres junto dos coletivos Cia dos Aflitos, Toda Deseo, Bacurinhas e Academia TransLiterária.

Minha história se parece com a de muitos, muda o local e algumas relações, mas ela se repete na trajetória de vários brasileires. Sou nascida na cidade de Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte. Vivemos num bairro situado na beira da BR 381, que dá nos fundos de duas grandes indústrias: Toshiba e Gerdau. Nossa casa fica entre essas indústrias e o Cemitério Municipal do Flamengo, o que povoa, em nosso nosso imaginário, a presença constante do trabalho “chão de fábrica” e da morte. Minha família não é “nativa” de Contagem. Viemos do interior de Minas Gerais, e muitos de nós nascemos e crescemos em terras que não existem mais: Macaúbas do Julião, Caveira, Kilombo dos Gerais, dentre outras. É uma família que se autodeclara parda, e aí começam alguns dos meus questionamentos enquanto artista.


Em minha trajetória pessoal, sempre tive a presença de algumas histórias dos meus ancestrais, bisavôs e bisavós. Me contaram que uma parte “boa” deles eram indígenas (ainda não consegui identificar os povos), outros, ninguém sabe dizer o que eram, apenas sabem que não eram brancos e viviam em um espaço rural onde todos eram considerados parentes. Outros viviam num kilombo que hoje se converteu em vilarejo. Alguém era espanhol. Um era bandeirante. De outros, nada se sabe além do ofício de trabalhar numa ferroviária. Minha família não tem muitas fotografias e muito do que nos resta são fragmentos de histórias que nunca constarão em nenhum documento oficial, são histórias repassadas a partir da oralidade.


Nasci na geração Contagense. Bisneta de Seu Juquinha Rocha, homem nascido em São Pedro dos Ferros (antigo aldeamento destinado ao povo Puri) e que, desde criança, começou a trabalhar costurando roupas para a elite local, até que, aos quinze anos, perdeu a visão. Coincidiu com o momento em que chegaram imigrantes italianos na cidade para estudar botânica, um desses imigrantes era músico e ensinou meu bisavô a tocar clarinete. A partir disso, Seu Juquinha desenvolveu a escuta e em seu autodidatismo se tornou maestro. Suas composições estão arquivadas no centro cultural da cidade, que leva o nome de meu bisavô. Meu tio-avô, Rafael, apelidado como Tchô Lili, foi aprendiz de música de seu pai e repassou o conhecimento para nós. Aos sete anos de idade, eu aprendi a ler partituras e a tocar flauta doce e transversal (também namorei o clarinete de meu bisavô e o piston do meu tio-avô). Foi dessa forma que as artes me foram apresentadas, a partir de conhecimentos ancestrais.


Um salto no tempo


Fui a primeira pessoa da minha família materna a concluir o Ensino Médio - logo, a primeira a entrar numa Universidade e a chegar, agora, na Pós-Graduação. Devido a toda essa trajetória, não carrego nenhum problema em dizer que estou na academia, pensando as artes dentro de uma estrutura de pensamento acadêmica. Considero importante demarcar esse lugar de acesso sempre negado a corpos não hegemônicos. Em 2009, entrei na UFMG como aluna do curso de graduação em Teatro (licenciatura). Em 2010, no curso técnico do Teatro Universitário.


O espaço acadêmico me proporcionou acessos tanto no âmbito das práticas e pensamentos do teatro, quanto também na abertura de reflexões acerca do mundo, das nossas lutas e vivências enquanto sujeitos. Trouxe conhecimentos da sociologia, da filosofia, trouxe autores e ampliou a forma de pensar e de ver o mundo. Trouxe, principalmente, elementos técnicos que ampliaram meu repertório como atriz, algo ainda não acessado em minha trajetória. Contudo, em meio a esse processo, comecei a me perguntar onde estavam os pesquisadores de teatro na América Latina. Nas nossas disciplinas, principalmente na graduação, constava uma grande carga horária de estudos baseados nos clássicos pensadores europeus – que inclusive respeito muito. Enquanto isso, no âmbito do pensamento latino-americano, tínhamos pouca ou quase nenhuma referência. Onde estavam os teatrólogos latinos? Onde estavam as mulheres pensadoras de teatro? Onde estavam nossas estéticas LGBTQIA+s e o nosso pensamento acerca da arte? Como nos referenciar? Isso me ativou novamente a pensar acerca da memória e sua ausência, aspecto que perpassa minha trajetória pessoal-familiar e começou a escorrer para dentro da academia, nessa busca por outras narrativas acerca das artes presenciais que não fossem as hegemônicas.


Outro salto no tempo


Já formada nos cursos técnico e de graduação, comecei a investigar, junto dos coletivos Academia TransLiterária, Bacurinhas e Toda Deseo, outras linguagens teatrais baseadas na performatividade e na radicalidade do discurso acerca das nossas existências, tanto no âmbito ético quanto estético. A partir de trabalhos como “Coroação da Nossa Senhora das Travestis”, “Calor na Bacurinha”, “Campeonato Interdrag de Gaymada”, “Nossa Senhora [do Horto]” e “Glória”, buscamos trazer a insurgência de nossos corpos para a cena enquanto cultura, em estéticas alinhadas às nossas lutas como corpo coletivo. Dessa maneira, conseguimos investigar outras possibilidades de relação com o público, aproximar o jogo teatral da festa e elaborar narrativas que contrapõem o discurso hegemônico acerca das artes presenciais e das nossas existências enquanto mulheres e LGBTQIA+.


A “luta” se converteu em potência na teatralidade e, junto dela, o riso, o deboche, o terror, a festa.

Em meio a esse processo, me embrenhei num circuito entre Bolívia e Peru, no qual tive acesso a coletivos femininos e feministas que lutaram contra as ditaduras militares que ocorreram na América Latina. Nessa pesquisa em trânsito, percebi outra ausência: a de narrativas em torno das mulheres que participaram dessas lutas. A partir desse buraco na história, iniciei a montagem do solo: “GUERRILHA – experimento para tempos sombrios”. Nesse trabalho, me debrucei nas histórias de mulheres que lutaram contra as ditaduras, seja na luta armada ou nas artes, para “desempoeirar” suas memórias dos arquivos, tornando vivas as suas histórias dentro da efemeridade que é o teatro. Durante o processo criativo, me baseei no estudo da Arte de Guerrilha, considerado um conceitualismo ideológico latino-americano para as artes. Os criadores desse conceito buscavam, nas estratégias de luta dos grupos guerrilheiros, metáforas e modos de fazer no campo das artes, no qual o corpo do artista e do espectador estavam intrinsecamente ligados à obra.


Conspirações


O espetáculo “GLÓRIA”, do coletivo Toda Deseo, tem como um dos primeiros acontecimentos cênicos um vídeo da ativista indígena e socióloga Avelin Buniacá Kambiwá, contando que o teatro chega ao Brasil como uma das principais armas da colonização, valendo-se da apresentação de espetáculos teatrais que catequizavam os povos originários e fortaleciam o desprendimento desses povos com suas próprias culturas.


Trazida pelo Padre Anchieta, a primeira montagem que veio para esta terra foi o “Auto da Barca do Inferno”, de Gil Vicente, que usava os nomes de lideranças indígenas daquele tempo nos personagens “vilões” da obra original. Filósofo pertencente ao povo Guarani, Kaká Werá reitera esse fato e afirma que o teatro precisa ser revitalizado em suas raízes, rompendo com os acordos colonizadores que o cercam desde a invasão.


Ao longo da história da América Latina, podemos reconhecer um emaranhado que vai desde o autoritarismo colonial até os atuais modelos políticos contemporâneos, fenômeno que, em sua ética e estética, nos coloca num ponto em que ao mesmo tempo divergimos e nos encontramos. A memória e sua ausência são, desse modo, ferramentas fundamentais para a construção e a desconstrução de nossas identidades e (des)identidades. Ferramentas que politizam as artes e elaboram saberes ligados aos seus respectivos momentos e conceitos, frequentemente reivindicando memórias invisibilizadas e apagadas da história oficial.


Estamos num país que carrega consigo as maiores taxas de racismo, feminicídio e LGBTQIA+fobia do mundo. Grande parte dos países latino-americanos têm na presidência governantes que defendem o retorno a ditaduras e que, em seus gabinetes de ódio, determinam leis que burlam a constituição nacional, estimulando a necropolítica contra diversos corpos. Líderes que desrespeitam, todos os dias, o luto de pessoas que perdem familiares e amigos, seja pela pandemia do Covid-19, pela guerra do narcotráfico, pelo encarceramento em massa. Governantes que quebram normas de segurança nacional, privatizam estatais e vendem nossos territórios.


Diante desse quadro, somos convocados a resistir. Mas como podemos ter a dimensão dessa palavra? O que significa, para nós, neste tempo, resistir? E como, enquanto artistas, poderíamos reinventar essa palavra e fazer delas uma potência estética no campo da arte presencial?

Não consigo ter uma resposta sobre o que é resistir, como resistir, quais seriam os modos eficazes de produzir resistência ou como produzi-la nas artes, pois não creio que exista uma forma ou um modelo a ser seguido. Intuo, por outro lado, que resistir seja uma ação. Não só vinculada à tomada de armas e à luta guerrilheira como aquela de outrora, mas que, no âmbito micropolítico, produz a metáfora de uma resistência corporal que dá conta da eminência da morte e da tortura. Falo de uma resistência corporal de atores e atrizes atrozes, que produz desconforto para nós e para o sistema, tratando das nossas capacidades e incapacidades. Uma resistência da memória, dos conhecimentos e saberes que o sistema autocrático, branco, europeu e cisheteronormativo nos obriga a esquecer. Resistir pode ser como fazer uma rede de pesca, criada pensando nos seus buracos. Resistir pode ter a ver com a desnormatividade dos nossos desejos. Mostrar que, apesar de, estamos vivos, cientes e criativos mesmo diante da colonização do nosso imaginário e inconsciente. Talvez resistir esteja naquilo que Kaká Werá chama de “revitalizar raízes” e de “reescrever nossa história a partir da nossa versão”, não apenas aceitando as narrativas que nos são contadas e tomadas como verdades.


Assim como meu bisavô, venho desenvolvendo a minha escuta. Nesse processo, aprendi duas palavras que se tornaram novas ao ouvi-las ecoar nas lutas dos povos indígenas: Demarcação e Retomada. Ecoando em suas vozes, no entanto, essas palavras tomaram outra potência. Se a colonização europeia e estadunidense nos tirou tanto ouro e prata, imagine o quanto levaram dos nossos conhecimentos, batizando-os com os seus nomes e nos vendendo de volta como verdades criadas por eles.


Talvez possamos aprender, a partir da memória e dos nossos processos artísticos, justamente o que já nos pertencia, demarcando nossos lugares enquanto sujeitos e coletividades e, ao mesmo, retomando nossas histórias, fazeres e pensamentos - contracolonizando as narrativas hegemônicas no âmbito das artes presenciais.


Nesse sentido, quais as potências das artes presenciais ao lidar com a memória no Brasil? Como podemos reescrever - com nossos corpos - a história, burlando os acordos hegemônicos? O que poderia significar, em arte, anticolonizar nossa memória, imaginário e nosso fazer? Ao anticolonizar a memória, descolonizamos também os corpos?

Esse texto é também um convite à resistência enquanto ação, abençoada pela efemeridade e errância do teatro. Resistimos a algo, a alguma coisa. Resistimos na reescrita da memória, na criação de outras narrativas, no riso diante da dor, na inspiração de outras possibilidades, na criação dos mundos que sonhamos.


É um convite a respirarmos um pouco junt_s - e respirar também é conspirar.

 

Idylla Silmarovi é artista da cena e pesquisadora sudaka, Investiga as interseções entre a arte e o ativismo dentro das artes da cena, principalmente no que tange os debates de gêneros, sexualidades e memória na América Latina. Artista-pesquisadora nos projetos "GUERRILHA – experimento para tempos sombrios" e "E.C.O.S. experimentos cênicos de orientação sudaka". Trabalha em parceria com a Academia TransLiterária e Toda Deseo. Diretora artística e idealizadora da plataforma Zona de Encontro. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Artes cênicas da Universidade Federal de Ouro Preto, com a pesquisa intitulada "Arte de Guerrilha e outras estéticas dissidentes".

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